11/12/2006

‘God Bless America

‘God Bless America – por Miguel Sousa Tavares
in Expresso

A primeira vez que fui aos Estados Unidos foi em 1976, o ano do Bicentennial, estava o país inteiro eufórico com os seus duzentos anos de independência. Eu estava no meu primeiro ano como estagiário de jornalismo, num tempo em que as oportunidades tinham de ser todas bem agarradas, e achei que nada melhor para conhecer o país do que percorrê-lo de lés a lés: peguei numa rulote em San Diego, na fronteira com o México, e entreguei-a cinco semanas mais tarde em Nova Iorque, tendo atravessado o país sozinho, embora com vários apoios logísticos por onde ia passando.
Como se calcula, ao longo dessas cinco semanas vivi histórias fantásticas, experiências ainda hoje inesquecíveis, episódios entre o cómico e o quase trágico, encontros de toda a ordem, desde os “truck drivers” encontrados ao balcão das estações de serviço das auto-estradas desertas do Arizona e Novo México até às personagens “underground” dos guetos negros de Memphis, no Tennessee. Rolava como se estivesse dentro dos próprios filmes que tantas vezes tinha visto, como o Peter Fonda no Easy Rider’ ou um dos adolescentes do ‘Last Picture Show’ do Peter Bogdanovich. E tudo acontecia como nos filmes, era tudo rigorosamente verdade: aquela era verdadeiramente “ the land of the free”, um país onde a liberdade individual, a sensação de que se é absolutamente dono de si, do seu tempo, da sua vontade e do seu destino, era tal forma inebriante que era preciso um esforço de contenção diário para não se deixar ir atrás do fluxo, aparentemente sem nexo, das coisas e do tempo. Jantando numa casa de uma família de classe média de uma cidadezinha do interior (onde tinha ido parar sem razão
nem lógica), assisti a uma lição de democracia base em directo, quando tocaram à campainha e entrou um candidato a xerife local, que vinha beber um café e expor as ideias da sua candidatura.
Cheguei a Nova Iorque inebriado de liberdade e fascinado com aquele sistema democrático da pirâmide: há mais gente a votar para a xerife da sua terra do que para o Presidente dos Estados Unidos. E cheguei a tempo de assistir na televisão aos impiedosos interrogatórios da comissão parlamentar de inquérito ao Watergate - autêntica lição prática que é o sistema de balança de poderes e que culminaria, meses mais tarde, com a renúncia do pantomineiro Richard Nixon, culpado de ter feito batota durante a campanha eleitoral e de ter mentido sobre isso. Mas, como também aprendi nessa viagem iniciática, há duas Américas que vivem juntas e que se alternam no poder, como se os americanos ainda não tivessem conseguido definir o modelo ético de país que pretendem: o país de Thomas Jefferson ou o do general Custer, o assassino de índios, morto em Little Big Horn. Há uma América liberal, democrática, que acredita que o respeito pela diferença é a marca fundadora do país e uma América profundamente inculta, sobranceira, chocantemente arrogante e ignorante, fundamentalista em matéria de religião, de valores e de tolerância, que habita lá por baixo, no “cowboy country”. A Nixon sucedeu um Presidente passagem, Gerald Ford - uma espécie de figurante mãos do sinistro Henry Kissinger. E a Ford sucedeu um homem bom, Jimmy Carter, vencido pelos ayatollahs do Irão, que criaram um tamanho desejo de desforra que os americanos se viraram para o “cowboy” mais a mão: o patético Ronald Reagan. Reagan seguiu todo o credo dos chamados conservadores: tirou aos pobres para dar aos ricos, e gastou todo o dinheiro a preparar-se para infinitas guerras, deixando o país, após dois mandatos, endividado para uma geração. Mas a sua abordagem politica, que não ia além da dicotomia primária entre as ‘bons’ e as ‘maus’, juntou-se a um concurso de circunstâncias históricas de viragem e permitiu-lhe, de facto, passar à história como o homem que derrotou a URSS e fez implodir aquilo a que Churchill havia chamado a “cortina-de-ferro”. Veio depois Bush, pai, um republicano genuíno, equilibrado, pragmático e sem grande carisma. Perdeu surpreendentemente a reeleição para um quase desconhecido que viria a ser, quer interna quer externamente, o melhor Presidente que os Estados Unidos tiveram desde o pós-guerra: Bill Clinton. Clinton recuperou o défice, relançou a economia, voltou a dar esperança aos pobres e deserdados da América e deu aos Estados Unidos, outra vez, um papel de liderança mundial fundada em valores e obrigações morais: Timor, por exemplo, deve-lhe a sua independência.
Mas Clinton acabou o seu segundo mandato humilhado pela hipocrisia dos neoconservadores, com a sua vida sexual exposta na net e o seu sucessor natural - Al Gore - derrotado em nome da moral e dos bons costumes. E foi o que se sabe: emergiu, após uma escandalosa batota eleitoral, esse medíocre do Bush-filho, estudante e empresário falhado, com a sua biografia militar e universitária declaradas confidenciais para que não se possa saber nunca a dimensão da sua mediocridade.
E George W. Bush perverteu a América, sem pudor nem consciência. Dinamitou todos os programas sociais e de integração de Clinton. Reduziu aos ricos o direito à saúde e à educação. Baixou os impostos às empresas, para que elas acumulassem lucros milionários, enquanto ele desbaratava o superavit recebido de Clinton. Recusou-se a ratificar o Protocolo de Quioto, já assinado pelos Estados Unidos, fazendo com que a nação mais poluente do mundo dê uma imagem de indiferença perante os problemas de aquecimento global do planeta. Autorizou a exploração de petróleo na zona altamente sensível do Alasca, de acordo com os interesses dos seus amigos e sócios da indústria petrolífera do Texas. Denunciou o tratado ABM, que tanto tinha custado a ser negociado com a Rússia, e acaba de declarar o espaço “zona de interesse militar e estratégico dos Estados Unidos, tal como a terra e o mar”. Recusou a admissão ao Tribunal Penal Internacional, promovendo o julgamento dos outros como réus de “crimes contra a humanidade”, mas excluindo os americanos acusados. Fez tábua rasa da centenária Convenção de Genebra sobre o tratamento dos prisioneiros de guerra, instaurando em Guantánamo a primeira prisão mundial onde os presos não gozam de qualquer estatuto nem direito, nem sequer o de se saber que estão presos. Instituiu países aliados como territórios de tortura livre para os seus prisioneiros, que para lá são transportados em aviões dos Estados Unidos, a fim de serem interrogados e torturados livremente por oficiais americanos, em total impunidade e clandestinidade. Promoveu a invasão do Iraque, depois de inventar e forjar provas de que o Iraque tinha armas de destruição maciça, para melhor servir os interesses do(s) seus amigos da Ali Burton, entre os quais o vice-presidente, Dick Cheney, e o maquiavélico secretário de Estado, Donal Rumfeld. E, na semana passada, por instruções directas de Bush, os Estados Unidos foram o único país que votou nas Nações Unidas contra o comércio livre de armas de guerra.
Esta semana Bush vai a julgamento nas eleições legislativas americanas. Será uma ocasião decisiva para perceber se os americanos já realizaram finalmente os danos causados por este Presidente, que representa o que de pior e mais obscuro a América tem. Já vai sendo tempo de os Estados Unidos se reconciliarem com o mundo e nós com eles.

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