9/29/2006

O mundo já não cabe nas páginas do jornal


Mário Bettencourt Resendes
Jornalista
Longe vão os tempos em que um golpe de Estado num qualquer país do Terceiro Mundo tinha lugar garantido nas primeiras páginas dos grandes jornais internacionais.

Uma vasta rede de correspondentes, espalhada pelo planeta, assegurava uma cobertura competente e exaustiva dos acontecimentos. Jornalistas que, por norma, trabalhavam em exclusivo para esses gigantes da Imprensa mundial conheciam bem a actualidade das zonas por que eram responsáveis e tinham os contactos certos para saber o que se lhes exigia.

Valha a verdade que a realidade era, na altura, bem mais linear. Com o mundo dividido entre as influências norte-americana e soviética, havia, quando muito, que detectar a novidade de uma discreta presença de agentes de Pequim ou uma ou outra réstea dos antigos poderes imperiais britânicos e franceses. Os correspondentes e enviados especiais dissecavam em profundidade, nas páginas dos jornais e grandes revistas internacionais, as lutas de bastidores ou os confrontos abertos. Não seria um mundo melhor, mas era, seguramente, bem mais compreensível. E as opiniões públicas qualificadas, disponíveis para uma leitura regular da Imprensa, tinham os instrumentos indispensáveis de descodificação dos mais variados cenários.

Quando entrevistei Ted Turner, na primeira metade dos anos 90, na sede da CNN em Atlanta, recordo-me de ter considerado exagerada a sua declaração de que a estação de televisão que fundou "tinha mudado o planeta de forma irreversível". Estou hoje convencido de que Turner estava certo. Não só pela CNN mas também pelos modelos semelhantes adoptados por outras cadeias televisivas (não esquecendo os mais recentes media electrónicos), a verdade é que a percepção da actualidade global passou a construir-se a partir da imagem e não poucas vezes fica por aí. A figura do correspondente exclusivo de Imprensa entrou em vias de extinção, com os principais jornais a desinvestirem progressivamente numa área que tem custos elevados e que evidencia um retorno cada vez mais reduzido em matéria de conquista de leitores. Sobrevive um ou outro caso, em que se destaca um estilo muito pessoal e um talento raro - por exemplo, Robert Fisk ou P. J. O'Rourke -, mas a regra passou a ser o recurso crescente às agências e a desvalorização do noticiário internacional. Estabeleceu-se uma espécie de máxima, proclamando a superioridade esmagadora da "informação local", privilegia-se o "interessante" descuidando o importante, as páginas de política internacional perderam terreno em favor das news to use. Concluiu-se que a política internacional (a política doméstica é uma história com contornos diferentes...) não vende...

Se olharmos para o comportamento recente do mercado de leitura, é uma conclusão acertada. Desapareceram revistas de qualidade, como a Far Eastern Economic Review, outras subverteram as prioridades temáticas, os baluartes da Imprensa aligeiraram os conteúdos e os grafismos.

O resultado de boa parte dessas reformulações mostra, mesmo assim, uma margem relativa de optimismo. Haverá que "filtrar" os números distorcidos pelo marketing de apoio à circulação e ter presente que é nos diários generalistas, como já aqui se escreveu, que o futuro é mais problemático. Não vislumbro uma receita mágica para uma conjuntura tão difícil, a não ser o estudo atento dos casos de sucesso, conjugado com a coragem e o talento de acções de ruptura -, tendo presente que a independência de uma publicação começa a esvair-se quando o seu equilíbrio económico-financeiro entra em situação de risco.

Regressando ao noticiário internacional, tema principal deste texto, é óbvio que os editores dessa área informativa enfrentam um desafio de peso.

O mundo não cabe mais nas páginas de um jornal e reclama-se critério selectivo e criatividade para encontrar abordagens capazes de se compatibilizarem com modelos susceptíveis de garantir o futuro da Imprensa.

Será uma Imprensa, em média, com menos "qualidade"? Provavelmente, mas não dramatizemos. Os jornais de referência nunca foram produtos de massas, mas hoje dificilmente sobrevivem, remetidos, em muitos países, a nichos de mercado. Se o seu "aligeiramento" funcionar como instrumento de viabilização, o custo pode mostrar-se virtuoso. Assim consigam os jornalistas da "escrita" encontrar pontos razoáveis de equilíbrio entre o apelo da "modernidade" e a preservação da "substância" informativa. Será, em alguma medida, uma contribuição para que um número mais alargado de cidadãos conviva melhor com a complexidade dos tempos modernos.